Liturgia da palavra e dos sentidos
Ricardo Ramalho |
Ricardo
Ramalho*
Embevecido desde as primeiras linhas,
percorri “Liturgia do fim” de Marilia Arnaud, como um banquete, sem fim, de
palavras, sentimentos e emoções. A cada página me assaltava a dúvida do que
virá adiante, sobremaneira, a sensação de perda dos termos sorvidos, até então,
com tanta volúpia literária. Mas, me surpreendia com o turbilhão de expressões
a me repletar de luxúria sentimental. Essa riqueza enobrece a leitura da
primeira a última página.
Compreendo que o enredo, a narrativa por
si só, me prendeu pouco. Estava embriagado pelas descrições minuciosas de
ambientes, situações e sensações. A poesia permeando, aromatizando e ornando o
texto. Caracteriza o meio urbano “com seus olhos d’água e garras felpudas de
luz, com sua pele amanhecida, recendente a pão e jasmim, que me rebocou pra
dentro da vida...” E o rural descreve com uma ardente paixão pela natureza. “A
paisagem aberta, ora arroxeada de jitiranas, pinhões e maracujás-bravos, ora
espinhosa de palmas, facheiros e
Com perfeição poética, desnuda
sentimentos dos personagens, como se fossem soluços d’alma. É assim que
descreve o retorno de Inácio à Perdição. “Podia ouvir a cantiga do vento
lapeando a ramaria, o clangor de um ferreiro rasgando a solidão da mata, a
flauta da correnteza nos calhaus do riacho, o tinido de chocalhos misturado à
toada de garotos na guiança de cabras. O mundo murmurava um segredo que
irrompia do ventre da serra, que soprava nos milharais, estalejava nos galhos
das árvores, recendia nos frutos, o meu segredo...”.
Arrisco a enxergar influências de estilo,
na ruralidade de Guimarães Rosa e na fixação de José Lins do Rego, quando
aborda elementos da natureza, em seus romances. Utilizando termos e expressões características
dos sertões nordestinos, me aproximou mais, pela minha origem e enriqueceu o
vocabulário tão restrito dos tempos atuais. A interpretação dos fenômenos
climáticos, o comportamento da flora e da fauna regionais, indica uma pesquisa
acurada, entremeada de sensibilidade e vivência, com esses cenários. A listagem
completa das abelhas nativas e a descrição da postura e cor dos ovos da
avifauna são provas desse esmero, afora citações de espécies da flora da região
que acompanham os relatos e ilustram a paisagem descrita.
Pululam do âmago da escrita, termos e
construções linguísticas que conseguem dar mais originalidade e meios de interpretação
ao leitor. Saí tropeçando e me deliciando com tanta vivacidade vernacular. ““Viver
pelejando”, “o estrugir monótono do quebrar das ondas”, “um passado que não
descora, que não arreda de mim”, “de rês lancetada tropeando para a morte”.
Não, não cabem mais exemplos, Esses bastam para nos impelir sempre a saborear
“Liturgia do fim”!
Marília Arnaud nos leva, sobremodo, a
refletir, profundamente sobre a vida, suas entranhas, nuancem, verdades, seus
traquejos, despenhadeiros e planícies, caminhos e veredas, com uma “amplidão
que repleta a alma” do leitor.
*Cronista pombalense radicado em Maceió Alagoas
Liturgia da palavra e dos sentidos
Reviewed by Clemildo Brunet
on
3/03/2017 08:02:00 AM
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